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Nova doutrina da Otan classifica Rússia como "ameaça direta"

29 de junho de 2022

Países-membros da Otan revelam novo conceito estratégico, que exclui planos de parceria com Moscou de uma década atrás e passa a classificar a Rússia como "ameaça mais significativa e direta" à segurança da aliança.

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Líderes da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, posam para uma fotografia oficial com os logos da Otan (também escrito Nato) e da cúpula de Madri ao fundo.
Líderes da aliança militar debatem estratégias políticas e militares para a próxima décadaFoto: Kenny Holston/Pool/AP/picture alliance

Em um claro sinal de como as relações entre Moscou e o Ocidente se deterioraram devido à guerra na Ucrânia, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) passou a classificar a Rússia como a principal ameaça à segurança das nações que formam a aliança militar.

No mais recente conceito estratégico da aliança, divulgado nesta quarta-feira (29/06) durante a cúpula da organização, em Madri, os 30 países-membros apontaram que "a Federação Russa é a ameaça mais significativa e direta à segurança dos aliados e à paz e à estabilidade na zona euro-atlântica" para a próxima década.

Em 2010, na cúpula realizada em Lisboa, em claro contraste, o documento indicava que a Otan buscava construir uma parceria de longo prazo com a Rússia. Dmitry Medvedev, o presidente do país na época, chegou a participar do encontro no qual o tema foi abordado.

Os conceitos estratégicos da Otan costumam ser atualizados a cada década. Com dez páginas, o documento é público e define as áreas de foco da aliança, indicando as orientações que a organização deve seguir em termos políticos e militares.

No conceito anterior, de 2010, o foco estava basicamente nos combates liderados pelos Estados Unidos contra os terroristas do Talibã, com o objetivo de instaurar uma democracia no Afeganistão – a retirada das tropas do país, em agosto do ano passado, levou os líderes do grupo radical novamente ao poder, após duas décadas.

Bastante distinta da atual, a estratégia da década passada havia sido definida quatro anos antes da anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, o que desencadeou um retorno da Otan às suas raízes de defesa coletiva, e não mais no gerenciamento de crises de segurança para além de suas fronteiras.

Novos conceitos estratégicos já eram esperados, inclusive porque países-membros teriam optado por aguardar alguns anos para mudar os rumos da aliança devido à presença de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos. No governo, Trump se mostrou um crítico ferrenho da Otan e ameaçou excluir a presença americana da entidade.

Na segunda-feira, o secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, disse que a cúpula em Madri poderia ser encarada como "transformadora" e "um ponto de virada", com várias decisões importantes a serem tomadas. Ele também anunciou que a Otan deveria aumentar de 40 mil para 300 mil o número de soldados em nível de alta prontidão – o maior reforço militar desde a Guerra Fria (1947-1991). Esse contingente deve ser deslocado principalmente para a extremidade oriental da aliança, ou seja, no Leste Europeu.

A imagem mostra o local onde ocorre a cúpula da Otan: uma ampla sala aberta com mesas e cadeiras individuais e vários telões ao centro.
Encontro ocorre em Madri, Espanha, e havia acontecido pela última vez em Lisboa, Portugal, em 2010Foto: Yves Herman/REUTERS

Atenção e canais abertos com a Rússia

O mais recente conceito estratégico da Otan acusa a Rússia de tentar "estabelecer esferas de influência e controle direto por meio de coerção, subversão, agressão e anexação", em uma clara referência à invasão da Ucrânia, que começou oficialmente em 24 de fevereiro deste ano.

Esses conceitos políticos e militares russos, segundo a Otan, têm sido buscados através de atividades das forças armadas e também por meio de ataques cibernéticos, o que caracteriza uma guerra híbrida para que Moscou atinja seus objetivos.

"O desenvolvimento militar de Moscou, incluindo as regiões dos países bálticos, do Mar Negro e do Mar Mediterrâneo, juntamente com sua integração militar com Belarus, desafia nossa segurança e nossos interesses", expõe o relatório.

O documento também expressa preocupação com a modernização da capacidade e do uso de sistemas nucleares por parte da Rússia, fazendo referência ao desenvolvimento de mísseis hipersônicos que podem transportar tanto armas convencionais quanto nucleares.

A Otan pondera, no entanto, que continua disposta a manter abertos os canais de comunicação com Moscou a fim de evitar riscos e escaladas de tensões, além de possíveis conflitos, ao mesmo tempo em que pretende conservar a transparência com o Kremlin.

A Rússia, por outro lado, acusa a Otan e os países ocidentais – formados em sua maioria por nações da Europa ocidental – de ameaçarem a segurança da própria Europa e, consequentemente, da Federação Russa, devido à expansão da aliança no Leste Europeu, em países que fazem fronteira com a Rússia.

O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, aparece na cúpula da Otan em Madri por meio de uma videoconferência.
O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, participou da cúpula nesta terça-feira por meio de videoconferênciaFoto: UKRAINIAN PRESIDENTIAL PRESS SERVICE/REUTERS

Apoio incondicional à Ucrânia

Durante a cúpula em Madri, que vai até esta quinta-feira, a Otan também reforçou seu apoio incondicional à Ucrânia na guerra contra a Rússia.

"A Ucrânia pode contar conosco pelo tempo que for necessário. Os aliados continuarão a fornecer assistências militar e financeira substanciais", declarou o secretário-geral, reforçando que a intenção da Otan é também apoiar a Ucrânia para a transição de equipamentos da era soviética para uma aparelhagem mais moderna, vinda da própria Otan.

Segundo Stoltenberg, os 30 países-membros da aliança acordaram um pacote abrangente de ajuda ao exército ucraniano, com armamentos, equipamentos de comunicação, combustível, suprimentos médicos e sistemas para enfrentar minas e ameaças provenientes de armas químicas e biológicas.

Stoltenberg também teceu acusações contra o presidente russo, Vladimir Putin, dizendo que "a guerra promovida por ele abalou a paz e desencadeou a maior crise de segurança na Europa desde a Segunda Guerra Mundial".

China é citada pela primeira vez

Outro país visto pela Otan como uma ameaça para a próxima década é a China, que pela primeira vez foi citada nos conceitos estratégicos da entidade. Em 2010, o país asiático era classificado basicamente como um parceiro de negócios e de produção industrial. Hoje, é mencionado como defensor de "declaradas ambições e políticas coercitivas [que] desafiam nossos interesses, segurança e valores", diz o documento.

O relatório da Otan também acusa a China de colocar em prática "operações híbridas e cibernéticas maliciosas", bem como retóricas de confronto e desinformação que visam prejudicar os aliados e a segurança dos países-membros da Otan.

As ambições econômicas chinesas também são citadas pela Otan, que indica que Pequim tenta controlar tecnologias, setores industriais, infraestrutura fundamental e cadeias de suprimentos e materiais essenciais.

Conforme o documento, a China "usa sua força econômica para criar divisões estratégicas e aumentar sua influência. [O país] Se esforça para subverter a ordem internacional baseada em regras, inclusive nos domínios espacial, cibernético e marítimo". A China nega todas as acusações.

A Otan também expressa preocupação com o estreitamento de laços entre Moscou e Pequim, que, para a aliança militar ocidental, são "tentativas reforçadas mutuamente de subverter a ordem internacional baseada em regras". E ainda com o aumento do poderio militar chinês, o que, na visão da Otan, continua "obscuro a respeito de suas estratégias e intenções".

A exemplo da tentativa de manter os canais de comunicação abertos com a Rússia, a Otan informou que permanecerá disposta às relações construtivas com a China, mas, ao mesmo tempo, aumentará a conscientização e a preparação contra "táticas coercitivas e os esforços para dividir a aliança".

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, é cercado por líderes em meio à aprovação do ingresso de Suécia e Finlândia na aliança. Na foto, estão o ministro do Exterior da Finlândia, Pekka Haavisto; o ministro do Exterior da Turquia, Mevlut Cavusoglu; o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg; o presidente da Finlândia, Sauli Niinisto; a primeira-ministra da Suécia, Magdalena Andersson; e a ministra do Exterior da Suécia, Ann Linde.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, é cercado por líderes em meio à aprovação do ingresso de Suécia e Finlândia na aliançaFoto: Bernat Armangue/AP/picture alliance

Adesão de Suécia e Finlândia

Por fim, a Otan oficializou a admissão de Finlândia e Suécia na aliança. O pedido de adesão e a consequente aceitação de ambos os países pelos atuais membros da organização provoca uma significativa transformação na arquitetura de segurança da Europa em décadas.

A Finlândia e a Rússia compartilham diretamente 1,3 mil quilômetros de fronteira. Com o ingresso finlandês, mais do que dobra a fronteira terrestre entre países-membros da Otan e a Rússia. A conclusão do processo, no entanto, pode durar mais alguns meses, ainda que os protocolos devam ser assinados já na próxima terça-feira.

Uma das nações responsáveis pela adesão dos dois países nórdicos é a Turquia, que vinha se opondo ao movimento, mas, em troca de concessões, aceitou o ingresso. O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, ameaçou impedir o processo de admissão – que precisa ser aprovado por todos os membros – ao exigir uma mudança de postura de ambos, Finlândia e Suécia, em relação a grupos curdos rebeldes considerados organizações terroristas pela Turquia.

Erdogan acusava Estocolmo e Helsinque de apoiarem o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e a milícia curda Unidades de Proteção do Povo (YPG), que possuem bases na Síria. O Ministério da Justiça turco afirmou que, nos últimos cinco anos, a Suécia e a Finlândia negaram 33 pedidos de extradição feitos pela Turquia.

As extradições seriam de indivíduos acusados de terem ligações com separatistas curdos ou pertencentes ao movimento liderado pelo clérigo Fethullah Gülen, responsabilizado por Erdogan por uma tentativa de golpe de Estado em 2016.

A Turquia repreendeu a Suécia, em particular, por tratar de forma "leniente" o PKK, que tem conduzido uma insurgência contra o Estado turco desde 1984. A Suécia também suspendeu as vendas de armas ao governo turco em 2019 por causa das operações militares na Síria.

gb (Reuters, AP, Lusa, ots)